sábado, 25 de janeiro de 2020

"Branca como a neve", a mais bela de todas

Branca de Neve e os sete anões (1937)

Adaptada de um conhecido conto, passado por várias gerações de forma oral e documentado em sua versão mais moderna (à época) pelos Irmãos Grimm, a Disney produz seu primeiro longa-metragem, e, também, o que veio a se tornar a primeira das clássicas princesas atribuídas a empresa. A primeira percepção é a diferença da história narrada no filme, para aquela que sempre foi contada na literatura. É comum hoje pensarmos que essa diferença se dá principalmente pela retirada dos pontos macabros (será? falaremos disso mais tarde), mas já de início boa parte da narrativa é cortada. No início do filme, nada é mostrado sobre os pais de Branca de Neve, só se sabe que ela tem uma madrasta - que é rainha, e mora com ela. Toda a história é escancarada nos 10 primeiros minutos de filme: ali, já se sabe que a rainha é extremamente vaidosa e quer eliminar Branca de Neve, já se conhece o príncipe e já se entende como tudo vai se desenrolar. Então eu não vou analisar a história, me sobram cerca de 70 minutos para analisar os contextos. 

Os traços da personagem já ficam evidentes desde as primeiras cenas. Branca de Neve é mostrada desempenhando tarefas domésticas com doçura, alegria e encanto - interagindo com tudo ao redor, especialmente os animais (e, é claro, cantando!). Mas a sua principal característica, sempre evidenciada é a beleza. Não vou pesar a mão na problematização, porque o filme é da década de 30 e a história de 1800 e bolinha, mas vou compartilhar as reflexões dessa imagem. Há tanto a se tirar disso. Por partes, a rainha, uma bruxa com entendimentos de encantos e poções, atrela seu poder ao fato de se sentir a mais bela de todas. Sua principal interação diária é seu espelho mágico, um simbolismo absurdo, principalmente quando se sabe que este é o responsável por deixar a rainha informada sobre qualquer "verdade" existente. Ao descobrir, pelo próprio espelho, que Branca de Neve supera a sua beleza, não seria o que a própria rainha vê? Quase como uma conclusão de sua vaidade e competitividade, de que uma adolescente de 17 anos é uma ameaça a forma como ela se enxerga e, por consequência, do uso do seu poder. Reflexões sobre idade, comparação com padrões existentes e auto-estima dentro da aparência. 

E falando nesses padrões, a mais bela de todas é exaustivamente descrita como aquela de pele branca como a neve - o que diz tanto sobre a época. A importância desse pequeno "adjetivo" é enorme. O racismo infelizmente é algo bastante recorrente nas obras da Disney, algumas vezes de forma sutil, outras não. A primeira princesa já marca quem pode se ver nela. Você começa a se sentir parte - ou não, do que vê sendo representado. E muitas não são perto dessa representação. Assim como todo o esteriótipo de beleza que cerca o contexto em que foi criada - e retratada da mesma forma mais de cem anos depois - o papel das representações são enormes, influenciando desde a infância como as crianças devem ser. Estamos chegando em mais cem anos de diferença, quanto será que mudamos?



Seguindo a história, a "Rainha Má", como é chamada, ordena que um de seus caçadores mate Branca de Neve e para que não restem dúvidas que o trabalho foi obedecido o entrega uma caixa para que o coração da jovem seja guardado como prova. O que chama atenção aqui é que é retratado exatamente dessa forma, o filme fala de assassinato - para crianças e não há eufemismos em nenhum momento. As palavras morte, matar e suas derivações são usadas MUITAS vezes, inclusive. Simples assim. 
"Só agora pensei que cruel né, mandar o cara matar ela e ainda ter que trazer o coração (...) Até dá mais pena dele ser obrigado a fazer isso do que de Branca de Neve". Fala de minha sobrinha de 10 anos (que aparecerá bastante por aqui), entre risos sobre a última parte. Um pensamento breve que fala sobre não só a problemática do ato como das relações de poder envolvidas. Foi uma criança que viu. 
Mas como todos sabem o caçador não consegue realizar a tarefa e entrega um coração de animal no lugar à rainha. A cena em que ele conta a Branca de Neve o que está acontecendo é muito interessante pela reação da personagem. Para mim, essa sequência de acontecimentos demonstram o medo extremo. Da notícia e do desconhecido. De se encontrar sozinha e perdida. Ela corre desesperada pela floresta, que de animais fofinhos com quem ela brincava, se transforma em formas assustadas e exageradas - o que a desespera cada vez mais até que sucumba ao medo. A personagem doce e inocente nunca havia lidado com o sentimento até então. Após desabar e chorar por um tempo no chão, o sentimento vai passando e o cenário começa a mudar: os animais ressurgem ao lado dela, as árvores vão sendo mostradas sem formas macabras e luz clareia. O medo que a cegava foi embora. 


Branca de Neve, então, pede desculpas aos animais. Seu erro foi ter saído de sua personalidade calma e doce, no auge do seu desespero. A cobrança de que se mantenha sempre o controle e não se renda aos sentimentos ruins - independente do que os origine, está impregnada em si. "Se soubessem pelo que eu passei, tudo porque tive medo", diz. Aqui o problema não foi a ameaça de morte, a perda da figura do único familiar que lhe restava e sim sua reação a isso. E conclui "Mas me sinto feliz agora, com vocês já não tenho medo". Agora já há companhia.
E então, ela chega a casa dos sete anões. A primeira reação é o espanto pela grande bagunça. Pelo tamanho dos móveis, Branca de Neve logo conclui que é uma casa com muitas crianças. Ao examinar a casa: teias de aranha, pilha de pratos na pia, meias e sapatos na mesa de janta. A conclusão da personagem é risível (de nervoso).
"Mas que bagunça! A mãe deles devia......Oh, são orfãos." Expressão triste e surpresa.
Sim, uma casa onde as tarefas domésticas não são realizadas implica dizer que não há uma figura materna. Esse retrato melhora se você adicionar o fato de que são sete homens que moram ali. Apenas uma personalidade feminina desempenharia tais funções. E é o que acontece na sequência, a protagonista começa a limpar toda a casa. Quando retornam a seu lar e se deparam com as luzes acesas, os anões começam a se "preparar" para quem quer que tenha o invadido. Surpresos com a limpeza, eles demonstram sequer entender o que seria organização. 


Mais uma vez o ato de assassinato é naturalizado com os anões se preparando com tacos e ferramentas e falando coisas como "Vamos matá-lo antes que ele acorde". Classificação livre. Todo o pensamento muda quando veem Branca de Neve.
"O que é isso?" "Oh, é uma moça..." E Zangado completa: "Oh, é uma mulher. Mulheres são falsas. Um sortilégio".
Sortilégio: feitiço, malefício, bruxaria. 
Branca de Neve relata o que lhe aconteceu, gerando medo nos anões - que conhecem a fama da rainha, e concluem que esta com certeza procurará a moça em sua casa. Mas apesar do risco, ela tem uma proposta irrecusável para ser aceita ali: se me deixarem ficar, eu faço tudo - lavo, passo varro, costuro, cozinho. Proposta aceita, é claro. E então se vê na sequência como Branca de Neve ocupa a figura materna, que observou a ausência assim que chegou. Isso é percebido no tom que a personagem trata os anões, ao organizar a casa, fazer a comida, dar ordens e indagar que "se não forem se lavar, ficarão sem janta". 

Enquanto tudo isso acontece a Rainha Má, ao descobrir que Branca de Neve ainda vive, segue falando deliberadamente em matá-la. Esta tem a conhecida ideia de fazer uma maçã envenenada e se disfarçar para levá-la a Branca de Neve. No seu calabouço em meio a livros de feitiços, caldeirão de bruxa e risadas caricatas a personagem debocha do alerta de contra-feitiço escrito no livro: um beijo de amor invalida o encanto "Sono da Morte". 
"Os anões não vão saber o que houve e vão enterrá-la. Ela será sepultada viva (risadas), sepultada viva (mais risadas)." Enquanto chuta um balde, oferecendo água, a um esqueleto preso em uma grades de seu calabouço. Bizarro
Com incontáveis conselhos dos anões, advertindo para não receber ninguém em casa. A hóspede abre a porta para a rainha disfarçada de idosa vendedora de maçãs. É que o argumento dela foi incontestável. Após dizer que fazia torta de pêssegos, a boa vendedora completa:
"É a torta de maçã que deixa os homens com água na boca." Magicamente a personagem se convence a escolher umas maçãs. 
Nesse ponto, a gente que tem bom senso e lembra que isso tá sendo passado para crianças, é de ter uma crise nervosa. Como se sabe, ao provar a maçã envenenada, Branca de Neve cai no feitiço de Sono da Morte, onde fica completamente desacordada. Os anões, depois dos alertas dos animais da floresta, retornam desesperados e encontram com a rainha em fuga. Numa tentativa que deu errado de atingir os anões, ela acaba caindo do penhasco e cena finaliza com os urubus imediatamente sobrevoando enquanto a tela escurece. E a gente achando que os detalhes macabros tinham sido cortados. 

Ao encontrarem Branca de Neve aparentemente morta, os anões a colocam num caixão de vidro - pois tal beleza precisa continuar a ser vista, e a velam por dias. Até que o príncipe, que esse tempo todo estava à procura da bela moça que havia conhecido, ouviu falar da história da moça que estava no caixão e foi atrás para ver se era "seu grande amor" (sic). Ao chegar lá, pede permissão para beijar à moça, e como tudo numa boa querer beijar alguém que está morta (para eles) e sendo velada há dias, os anões consentem (sim, o consentimento é deles). Então, Branca de Neve acorda, todos comemoram, ela se casa com o príncipe e toda aquela coisa que já sabíamos que finalizaria o filme. Para ser sincera, eu não via há muito tempo, eu esperava que houvesse algum contexto mais plausível para esse beijo final. Mas é exatamente isso mesmo (mais risos de nervoso).

As impressões do filme, considerando todo o contexto em que foi criado, é que além de toda a problemática de feminilidade, machismo, padrões impostos, há outras coisas preocupantes nas mensagens passadas. Talvez seja chatice minha, mas me choca muito como esse tema de matar seja retratado "como se não fosse nada". Na verdade, toda a história gira em torno dessas tentativas de assassinato. Eu não sei bem como isso entra na cabeça das crianças que assistem, sendo retratado dessa forma. Acredito que a falta de tato possa ser atribuída à época, também, visto que os filmes mais atuais não abordam dessa forma. Também não sei se eufemismos são a forma mais indicada de tratar o assunto, é só uma impressão pessoal. 

Outro ponto que acho muito interessante, é o retrato de cada um dos anões. Como todos têm um traço determinante de sua personalidade como identidade. Eu adoraria entender mais a fundo o que eles significam, alguns dizem ser traços de transtornos psicológicos, outros planetas e astros, chakras. Eu não faço ideia, mas com certeza pela diferenciação e particularidade de cada um, eles têm histórias para contar. Chamo atenção apenas a Dunga, único que não fala, e retratado como mais novo, é sempre o mais "abobalhado" e frequentemente usado de cobaia ou esquecido pelos demais. O que será que o Sr. Walt Disney queria dizer com a junção disso tudo? Só sei que é o mais querido das crianças, talvez pela inocência. É certamente o personagem que eu mais tinha memória afetiva.

Foi uma experiência ótima assistir tudo com outros olhos, tentando enxergar como se fosse algo novo a se analisar do zero. Adoraria também saber outras impressões e pontos de vista. Há tanto mais a se observar com certeza, que talvez tenha deixado passar, mas fico por aqui. Vejo vocês em Pinóquio.


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