terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Pinóquio e o medo como ferramenta

Pinóquio (1940)

Pouco tempo depois de seu primeiro longa-metragem, com o intuito de mostrar que animações podem ser levadas a sério como filmes. A Disney ressurge com mais um personagem já existente na literatura, mas dessa vez contou a história de forma completamente diferente. Gostaria de começar citando que esse filme é extremamente aclamado pela crítica, mesmo nas análises mais atuais. Acho que ainda tenho que caminhar muito para entender. 

Há uma atmosfera de fábula, uma mensagem de moral por trás, iniciando com o Grilo Falante. O personagem te convida a ouvir uma história que ele tem a contar: de quando viu um desejo se tornar realidade. Ele te levará a um vilarejo, mais especificamente na casa de um velho carpinteiro chamado Geppeto. Já nota-se características marcantes no ambiente, muitas peças feitas à mão, relógios "cuco" por toda a parte, muitas cores, sons e movimentos. Enquanto isso, Geppeto está finalizando seu trabalho, uma marionete em formato de menino em tamanho "real". Ao fim, fica muito orgulhoso do que fez e comemora pela casa com seus animais de estimação Fígaro e Cléo, um gato e um peixe, respectivamente. Com uma orquestra de relógios quando chega às 9 horas, todos se preparam para dormir. Eis que ao Fígaro abrir a janela (sim), o carpinteiro avista a "estrela do desejo" e a ela pede que Pinóquio transforme-se em um menino de verdade. Este termo, menino de verdade, é ecoado por todo o filme e faz parte da mensagem passada. 

No meio da noite, a luz da estrela toma conta do ambiente e se transforma em uma fada azul. Ela veio atender o desejo de Geppeto, e deu vida ao boneco de madeira. Ao perceber-se vivo Pinóquio comemora que pode se mover, pode falar. E então a fada o informa: 
"Se provar que é valente, sincero e generoso, um dia será um menino de verdade". E que para isso, ele terá que usar sua consciência. "Que é consciência?" questiona. Surge o Grilo Falante como voluntário, e fada azul o designa para ser a consciência de Pinóquio.
 "Consciência é aquela baixinha e calma voz que as pessoas não ouvem"
Minha sobrinha ao meu lado comenta: não se esqueça do bom senso. Acho que alguém precisava ter dito isso a Disney naquela época. Como papel de consciência, o Grilo conversa com Pinóquio tentando te explicar como ele poderá se tornar um menino de verdade. Então se inicia um diálogo sobre resistir às tentações. Que, segundo ele, podem ser muitas coisas: "Coisas erradas que parecem certas. Ou coisas certas que possam acontecer na hora errada." Não ajudou muito. 
Geppeto, que acorda assustado com o barulho, percebe que tem alguém em sua casa. Imediatamente o personagem retira uma espingarda debaixo de seu travesseiro. É isto mesmo. Mais uma vez a naturalização do ato de matar. Na mesma hora, não só eu como minha sobrinha levamos um susto e ela deu um grito: QUÊ? Ele é louco. (UFA). Então ele encontra Pinóquio, fica feliz por seu desejo atendido, mais comemorações, etc. 

No outro dia, Pinóquio já inicia a sua vida como uma criança qualquer. Seu agora pai o arruma para ir à escola - sozinho. E lá segue a então criança a exatamente um dia pegando seu rumo acompanhada somente de um grilo. Sua consciência, aparentemente, deveria bastar, mas não é o que ocorre. Dois vigaristas, João Honesto (ai, a Disney), uma raposa, e "Gideão", um gato mudo, avistam Pinóquio e veem uma oportunidade de ganhar dinheiro: um boneco falante e, como eles enfatizam, "sem cordas". Aqui as cordas podem ser vistas como os laços que o prendiam a seu criador, agora Pinóquio age por si só. E aparentemente o guri não manja muito (não resisti). João Honesto começa a argumentar: não há sentido em ir à escola, é perder tempo, que um menino que sabe das coisas iria tentar a vida no teatro. O Grilo, em seu papel de consciência chama Pinóquio, o aconselha a agradecer o convite, mas rejeitar e ir para a escola. É claro que o boneco não seguiu isso, deixando seu conselheiro de lado e partindo para o teatro. Apresentando-se no show de personagens sexualizados do italiano Stromboli, Pinóquio faz sucesso com a plateia por ser um boneco falante.

A consciência, apesar de seu papel designado, meio que larga de mão(?). O Grilo simplesmente entra em uma crise existencial, afirmando não ter utilidade. E então solta a pérola:
"Acho que ele não precisa mais de mim. Afinal, para que um ator precisa de consciência" HAHAHAHHAHAHA é sério. Surreal.
O vilão fica bastante empolgado com todo o dinheiro ganho em um só dia, e então aprisiona Pinóquio quando este relata que precisa voltar para casa. Quando o boneco tenta argumentar a resposta é: Cala a boca se não quiser que eu te dê uma grande surra. Seguido de uma ameaça de cortá-lo e colocar como lenha para fogo. Eu não sei se na década de 40 era ok passar um filme para crianças ameaçando as desobedientes desse tipo de represália, mas aparentemente sim. Vendo a carruagem de Stromboi passando ao longe, o Grilo decide ir falar com Pinóquio, para se despedir e então o vê enjaulado. Apesar disso, não consegue fazer nada para ajudá-lo. Acho que no fundo o filme é uma piada sobre como nossa consciência não consegue nos impedir de fazer merda. Só pode. 

A fada azul reaparece e pergunta o que houve. É nesse momento que Pinóquio lida com um sentimento novo: constrangimento. O personagem demonstra estar envergonhado, ele toma a culpa por suas escolhas "ruins" e por estar na situação que chegou. É uma mensagem clara de: é isso que você está sujeito quando não obedece as regras. Bizarro, mas não para aí. Chega então o momento clássico: ele então decide não dizer a verdade. A cada mentira o seu nariz cresce, como um galho. Cresce e ele não entende o que está acontecendo, mas continua a mentir. Até que o galho, já enorme, apodrece e morre. A fada repreende.

"Talvez você não esteja dizendo a verdade. Menino que quer ser mau, não passará de menino de pau". Tudo cai no reforço de passar a mensagem de que a cada erro, a identidade da criança vai sendo deformada. Ele nunca será um menino de verdade, se não for um exemplo íntegro, com todas as qualidades exigidas e esperadas dele. A fada encerra libertando Pinóquio e o Grilo, e advertindo que não o ajudará novamente. Mais uma vez ele está sozinho - apenas com sua consciência.
O filme chega agora no diálogo mais bizarro para mim (mas obviamente nem perto de ser a parte mais bizarra...). Em um tipo de reunião estão João Honesto, Gideão e um senhor "Cocheiro" negociando algo. Este último joga na mesa um saco de moedas brilhantes e oferece dinheiro de verdade. Os outros dois se entreolham e João perguntam "Quem é que vamos ter que..." e faz o sinal de degolar com a mão. Pouco sutil. Oh não, mas o Cocheiro os "tranquiliza", não é o que eles estão pensando. Ele esclarece que está procurando meninos "burrinhos", "que mentem, gazeteiam aula". Chega perto da raposa e fala algumas coisas no ouvido dele e retorna a falar alto: "e então eu os levo para Ilha dos Prazeres". 
"E se a polícia nos pegar?", pergunta João Honesto. O Cocheiro responde que não precisa se preocupar... enquanto muda o tom de voz para algo mais sério e ríspido, enquanto seu rosto se torna vermelho e assume uma aparência diabólica: "Eles nunca voltam de lá... Como meninos."

A essa hora eu só pensava mas que porra é essa e queria parar de assistir, mas fui firme e forte e prossegui. Apesar de assustados com a proposta - mesmo que anteriormente estivessem pouco ligando para a lei - os vigaristas seguiram em busca de meninos "burrinhos" para TRAFICAR e encontram Pinóquio no caminho afinal de contas quem mais propício a fazer merda não é mesmo?. Então eles seguem levando-o para a carruagem cheia de garotos, a caminho da Ilha dos Prazeres. No caminho, Pinóquio faz um amigo que enaltecia o lugar para onde estavam indo. "Aquilo que é vida. Sem escola, sem preocupações. Toda comida e bebida de graça".

A Ilha, que é um enorme parque de diversões, é também uma verdadeira zona. Muito barulho e pessoas - basicamente crianças, fazendo o que mais querem. É dividida em várias regiões. Pinóquio não sabe muito bem como se situar, então acompanha seu amigo Espoleta. Este o convida para uma sala: "Vamos lá dar um soco no nariz de alguém?" "Por que?" "Ah, só para se divertir". Diálogos de dar inveja a qualquer pedagogo. 

É até difícil enumerar as cenas mais bizarras, mas essa é de lascar. Enquanto o Grilo tenta achar Pinóquio no meio daquilo tudo, o Cocheiro vê que está na hora de fechar o local. E é aí que ele com seu chicote ordena seus escravos funcionários a fecharem as portas. Esses homens são representações monstruosas, pretas, sem formas de rosto definidas. É algo escandalosamente racista e incômodo de se ver. Como se não bastasse, descobrimos também que os meninos quanto mais cometem "pecados" na Ilha dos Prazeres, mais rápido se tornam literalmente burros. O animal aqui escolhido pode significar diferentes sentidos pejorativos: tanto no sentido de ignorância, como a desobediência (lembrando inclusive castigos escolares antigos) ou até mesmo pelo trabalho forçado (burros de carga). Uma vez que transformados completamente, não há chance de retornar a "menino de verdade". Não há redenção.


E o que acontece com esses burrinhos? (Não, o "castigo" não é a transformação somente). É claro! Eles se tornam escravos e são encaminhados para minas. É absurdo. Sim, o tráfico infantil existe, bem como a escravidão ainda (imagine em 1940). Mas aqui toda a seriedade do assunto é banalizada e reduzida a punição para crianças que não se portam como meninos de verdade. No intervalo de um dia isso aconteceu com Pinóquio, pois ele faltou à escola. Nada interessa sobre o fato de ele ter se tornado também há um dia uma criança, não ter recebido educação ainda, não entender malícia humana, as questões de o que é certo ou errado que ele refletia sem concluir. Aqui a criança é deixada somente com sua consciência, para entender sozinha e caso não siga a direção esperada, a Disney escancara para você os riscos que você "se coloca". É a pura chantagem emocional, pela linguagem de aterrorizar e amedrontar disfarçada de lição de moral e mensagem educativa. Um dos burrinhos implora chorando ao cocheiro: ele quer a mãe, quer voltar para casa. Mas a resposta é, em meio a chicotadas no ar: "vocês já se divertiram, agora vão ter que pagar". Lembrem da aparência diabólica relatada anteriormente. Qual seria esse tipo de punição associado a palavra "prazer" que a Disney quis dizer com isso tudo?

Enquanto tudo isso ocorre, Pinóquio e Espoleta estão em um salão de jogos, teoricamente se divertindo, numa mesa de sinuca e fumando charuto. Sim, fumando charuto. "Isso que é vida... Você fuma como minha vó, vamos lá, dê uma boa tragada", diz Espoleta. Ao seguir o exemplo do amigo, o boneco de madeira sente um mal-estar enquanto vai mudando de cor. O corpo de Pinóquio vai amolecendo e sua visão embaçando. Talvez a única tentativa de mensagem "educativa" do filme seja: você vai passar mal se fumar isso, criança.


Ao chegar, o Grilo mais uma vez tenta aconselhar Pinóquio. Espoleta zomba da situação: "você vai ouvir um gafanhoto?". Defendendo seu argumento, a consciência diz "Como espera ser um menino de verdade? Fumando, jogando sinuca, vamos para casa agora". Não funciona, até que a transformação começa a acontecer com o amigo, e pouco depois, com ele mesmo. Essa cena é simplesmente a coisa mais MAS QUE PORRA É ESSA que você pensa porque passam isso para crianças. A transformação paulatina da criança em animal, e a demonstração de desespero dele, não dá nem para comentar. Para Espoleta já não há mais retorno, transformou-se em burro. Pinóquio e o Grilo conseguem escapar. Mas é claro que não vai ficar tudo bem ainda. 

Chegando em casa, percebem que está tudo fechado, as luzes desligadas, e espiam pela janela. Teias de aranha, tudo vazio, nenhum sinal de vida. (Eu nem sei quantos séculos eles passaram longe). Sem entenderem o que aconteceu, sentam na porta de casa. Até que uma pomba branca traz um bilhete: Geppeto, por ter saído para procurar Pinóquio, acabou sendo engolido por uma enorme baleia. E então eles saem em busca dessa baleia. O boneco e o Grilo amarram-se a pedras e atiram-se ao mar, para que possam afundar e procurar debaixo d'água (rs). Algumas vezes a consciência tenta avisar que a baleia é perigosa, conhecida por Monstro, e todos os animais marinhos se assustam com a passagem de ambos e por estarem a procurando. Então, Pinóquio encontra a baleia e é engolido por ela para procurar sua família. Lá dentro, Geppeto praticamente construiu um vilarejo com tudo que o animal engoliu junto com ele, Fígaro e Cléo. Fica muito feliz em encontrar Pinóquio, mas assume uma postura de quem se conformou a estar fadado de ficar ali dentro para sempre. "Até já construí minha casa". Mas Pinóquio está disposto a fazer tudo para "consertar" as coisas e tirá-los dali. 

Acho que lembrando da ameaça que sofreu no início do filme, ele começa a procurar várias coisas de madeira para fazer uma fogueira. Sua intenção é criar fumaça, para assim a baleia espirrá-los para fora de seu corpo. O plano não sei como acaba funcionando e depois de muita peleja eles saem, na jangada construída por Geppeto. Porém, como alertado pelo carpinteiro, o animal fica muito furioso, e todos entram em um embate que acaba com a baleia jogando-os com muita força para a costa. Apesar de bater em pedras e a força da água, todos saem ilesos (inclusive o Grilo). Aliás, quase todos, pois Pinóquio afogou-se. É isso, ele acabou morrendo no embate. Aparentemente a Disney tem uma tara por matar os personagens principais ou algo do tipo. Todos retornam para casa, e Geppeto leva seu então filho e o coloca em sua cama. Enquanto todos estão tristes e se lamentando pela perda, a fada azul aparece mais uma vez e agora dá vida novamente a Pinóquio, e o transforma, finalmente, em um menino de verdade. O que traz alegria não só a ele, como todos a seu redor. Especialmente seu "pai", que teve seu desejo inicial atendido. O Grilo, por sua vez, vai agradecer a estrela e é recompensado com um distintivo de ouro. Aparentemente, por ter sido uma consciência muito útil ou algo do tipo. Ele finaliza cantando "É só você pedir e a estrela transformará em realidade o que você sonhou".



Eu classifico como um filme que não consegui separar bem as coisas para relevar a época em que foi feita. Passa longe de ter que contextualizar, é absurdo e ponto final. Em muitos e muitos níveis. O personagem principal literalmente se sacrificou para então ser "promovido" a menino de verdade. Esta foi a única forma de ele conseguir compensar seus erros. Para os demais meninos, a escravidão e vida animalizada (Eu nem vou entrar nesse conceito, porque sinceramente acho que não precisa explicar a associação de animais a escravos). Um discurso de dualidade entre certo e errado, bem ou mal, representado de uma forma aterrorizantemente problemática. Sabemos como as coisas eram no início do século passado, e tudo bem se tivessem ficado por lá. Em uma breve pesquisa se vê como o filme é ainda aclamado nos dias de hoje, obtendo inclusive notas máximas em sites renomados de crítica. Nenhuma pontuação sobre o que precisaria ser atualizado, ou apontado como ultrapassado, para melhorar a mensagem. Só posso concluir que para alguns, determinadas coisas não são tão ultrapassadas assim.

Pinóquio traz o puritanismo em sua melhor forma: hipocrisia, tirania e pose de boa intenção. Meu único consolo é que eu o assisti quando criança e não lembrava de nenhum desses absurdos, então só posso esperar que as crianças que viram isso guardem apenas as partes lúdicas e proveitosas que hoje já não consigo saber quais são. Hoje vi que a Disney está em processo de criação do live-action desse filme, vamos ver se o bom senso vai aparecer dessa vez. Fico por aqui, o próximo filme é "Fantasia" também de 1940 meu deus mal posso esperar para as coisas melhorarem um pouco.

Fiquem com Fígaro, única coisa aproveitável desse filme.

sábado, 25 de janeiro de 2020

"Branca como a neve", a mais bela de todas

Branca de Neve e os sete anões (1937)

Adaptada de um conhecido conto, passado por várias gerações de forma oral e documentado em sua versão mais moderna (à época) pelos Irmãos Grimm, a Disney produz seu primeiro longa-metragem, e, também, o que veio a se tornar a primeira das clássicas princesas atribuídas a empresa. A primeira percepção é a diferença da história narrada no filme, para aquela que sempre foi contada na literatura. É comum hoje pensarmos que essa diferença se dá principalmente pela retirada dos pontos macabros (será? falaremos disso mais tarde), mas já de início boa parte da narrativa é cortada. No início do filme, nada é mostrado sobre os pais de Branca de Neve, só se sabe que ela tem uma madrasta - que é rainha, e mora com ela. Toda a história é escancarada nos 10 primeiros minutos de filme: ali, já se sabe que a rainha é extremamente vaidosa e quer eliminar Branca de Neve, já se conhece o príncipe e já se entende como tudo vai se desenrolar. Então eu não vou analisar a história, me sobram cerca de 70 minutos para analisar os contextos. 

Os traços da personagem já ficam evidentes desde as primeiras cenas. Branca de Neve é mostrada desempenhando tarefas domésticas com doçura, alegria e encanto - interagindo com tudo ao redor, especialmente os animais (e, é claro, cantando!). Mas a sua principal característica, sempre evidenciada é a beleza. Não vou pesar a mão na problematização, porque o filme é da década de 30 e a história de 1800 e bolinha, mas vou compartilhar as reflexões dessa imagem. Há tanto a se tirar disso. Por partes, a rainha, uma bruxa com entendimentos de encantos e poções, atrela seu poder ao fato de se sentir a mais bela de todas. Sua principal interação diária é seu espelho mágico, um simbolismo absurdo, principalmente quando se sabe que este é o responsável por deixar a rainha informada sobre qualquer "verdade" existente. Ao descobrir, pelo próprio espelho, que Branca de Neve supera a sua beleza, não seria o que a própria rainha vê? Quase como uma conclusão de sua vaidade e competitividade, de que uma adolescente de 17 anos é uma ameaça a forma como ela se enxerga e, por consequência, do uso do seu poder. Reflexões sobre idade, comparação com padrões existentes e auto-estima dentro da aparência. 

E falando nesses padrões, a mais bela de todas é exaustivamente descrita como aquela de pele branca como a neve - o que diz tanto sobre a época. A importância desse pequeno "adjetivo" é enorme. O racismo infelizmente é algo bastante recorrente nas obras da Disney, algumas vezes de forma sutil, outras não. A primeira princesa já marca quem pode se ver nela. Você começa a se sentir parte - ou não, do que vê sendo representado. E muitas não são perto dessa representação. Assim como todo o esteriótipo de beleza que cerca o contexto em que foi criada - e retratada da mesma forma mais de cem anos depois - o papel das representações são enormes, influenciando desde a infância como as crianças devem ser. Estamos chegando em mais cem anos de diferença, quanto será que mudamos?



Seguindo a história, a "Rainha Má", como é chamada, ordena que um de seus caçadores mate Branca de Neve e para que não restem dúvidas que o trabalho foi obedecido o entrega uma caixa para que o coração da jovem seja guardado como prova. O que chama atenção aqui é que é retratado exatamente dessa forma, o filme fala de assassinato - para crianças e não há eufemismos em nenhum momento. As palavras morte, matar e suas derivações são usadas MUITAS vezes, inclusive. Simples assim. 
"Só agora pensei que cruel né, mandar o cara matar ela e ainda ter que trazer o coração (...) Até dá mais pena dele ser obrigado a fazer isso do que de Branca de Neve". Fala de minha sobrinha de 10 anos (que aparecerá bastante por aqui), entre risos sobre a última parte. Um pensamento breve que fala sobre não só a problemática do ato como das relações de poder envolvidas. Foi uma criança que viu. 
Mas como todos sabem o caçador não consegue realizar a tarefa e entrega um coração de animal no lugar à rainha. A cena em que ele conta a Branca de Neve o que está acontecendo é muito interessante pela reação da personagem. Para mim, essa sequência de acontecimentos demonstram o medo extremo. Da notícia e do desconhecido. De se encontrar sozinha e perdida. Ela corre desesperada pela floresta, que de animais fofinhos com quem ela brincava, se transforma em formas assustadas e exageradas - o que a desespera cada vez mais até que sucumba ao medo. A personagem doce e inocente nunca havia lidado com o sentimento até então. Após desabar e chorar por um tempo no chão, o sentimento vai passando e o cenário começa a mudar: os animais ressurgem ao lado dela, as árvores vão sendo mostradas sem formas macabras e luz clareia. O medo que a cegava foi embora. 


Branca de Neve, então, pede desculpas aos animais. Seu erro foi ter saído de sua personalidade calma e doce, no auge do seu desespero. A cobrança de que se mantenha sempre o controle e não se renda aos sentimentos ruins - independente do que os origine, está impregnada em si. "Se soubessem pelo que eu passei, tudo porque tive medo", diz. Aqui o problema não foi a ameaça de morte, a perda da figura do único familiar que lhe restava e sim sua reação a isso. E conclui "Mas me sinto feliz agora, com vocês já não tenho medo". Agora já há companhia.
E então, ela chega a casa dos sete anões. A primeira reação é o espanto pela grande bagunça. Pelo tamanho dos móveis, Branca de Neve logo conclui que é uma casa com muitas crianças. Ao examinar a casa: teias de aranha, pilha de pratos na pia, meias e sapatos na mesa de janta. A conclusão da personagem é risível (de nervoso).
"Mas que bagunça! A mãe deles devia......Oh, são orfãos." Expressão triste e surpresa.
Sim, uma casa onde as tarefas domésticas não são realizadas implica dizer que não há uma figura materna. Esse retrato melhora se você adicionar o fato de que são sete homens que moram ali. Apenas uma personalidade feminina desempenharia tais funções. E é o que acontece na sequência, a protagonista começa a limpar toda a casa. Quando retornam a seu lar e se deparam com as luzes acesas, os anões começam a se "preparar" para quem quer que tenha o invadido. Surpresos com a limpeza, eles demonstram sequer entender o que seria organização. 


Mais uma vez o ato de assassinato é naturalizado com os anões se preparando com tacos e ferramentas e falando coisas como "Vamos matá-lo antes que ele acorde". Classificação livre. Todo o pensamento muda quando veem Branca de Neve.
"O que é isso?" "Oh, é uma moça..." E Zangado completa: "Oh, é uma mulher. Mulheres são falsas. Um sortilégio".
Sortilégio: feitiço, malefício, bruxaria. 
Branca de Neve relata o que lhe aconteceu, gerando medo nos anões - que conhecem a fama da rainha, e concluem que esta com certeza procurará a moça em sua casa. Mas apesar do risco, ela tem uma proposta irrecusável para ser aceita ali: se me deixarem ficar, eu faço tudo - lavo, passo varro, costuro, cozinho. Proposta aceita, é claro. E então se vê na sequência como Branca de Neve ocupa a figura materna, que observou a ausência assim que chegou. Isso é percebido no tom que a personagem trata os anões, ao organizar a casa, fazer a comida, dar ordens e indagar que "se não forem se lavar, ficarão sem janta". 

Enquanto tudo isso acontece a Rainha Má, ao descobrir que Branca de Neve ainda vive, segue falando deliberadamente em matá-la. Esta tem a conhecida ideia de fazer uma maçã envenenada e se disfarçar para levá-la a Branca de Neve. No seu calabouço em meio a livros de feitiços, caldeirão de bruxa e risadas caricatas a personagem debocha do alerta de contra-feitiço escrito no livro: um beijo de amor invalida o encanto "Sono da Morte". 
"Os anões não vão saber o que houve e vão enterrá-la. Ela será sepultada viva (risadas), sepultada viva (mais risadas)." Enquanto chuta um balde, oferecendo água, a um esqueleto preso em uma grades de seu calabouço. Bizarro
Com incontáveis conselhos dos anões, advertindo para não receber ninguém em casa. A hóspede abre a porta para a rainha disfarçada de idosa vendedora de maçãs. É que o argumento dela foi incontestável. Após dizer que fazia torta de pêssegos, a boa vendedora completa:
"É a torta de maçã que deixa os homens com água na boca." Magicamente a personagem se convence a escolher umas maçãs. 
Nesse ponto, a gente que tem bom senso e lembra que isso tá sendo passado para crianças, é de ter uma crise nervosa. Como se sabe, ao provar a maçã envenenada, Branca de Neve cai no feitiço de Sono da Morte, onde fica completamente desacordada. Os anões, depois dos alertas dos animais da floresta, retornam desesperados e encontram com a rainha em fuga. Numa tentativa que deu errado de atingir os anões, ela acaba caindo do penhasco e cena finaliza com os urubus imediatamente sobrevoando enquanto a tela escurece. E a gente achando que os detalhes macabros tinham sido cortados. 

Ao encontrarem Branca de Neve aparentemente morta, os anões a colocam num caixão de vidro - pois tal beleza precisa continuar a ser vista, e a velam por dias. Até que o príncipe, que esse tempo todo estava à procura da bela moça que havia conhecido, ouviu falar da história da moça que estava no caixão e foi atrás para ver se era "seu grande amor" (sic). Ao chegar lá, pede permissão para beijar à moça, e como tudo numa boa querer beijar alguém que está morta (para eles) e sendo velada há dias, os anões consentem (sim, o consentimento é deles). Então, Branca de Neve acorda, todos comemoram, ela se casa com o príncipe e toda aquela coisa que já sabíamos que finalizaria o filme. Para ser sincera, eu não via há muito tempo, eu esperava que houvesse algum contexto mais plausível para esse beijo final. Mas é exatamente isso mesmo (mais risos de nervoso).

As impressões do filme, considerando todo o contexto em que foi criado, é que além de toda a problemática de feminilidade, machismo, padrões impostos, há outras coisas preocupantes nas mensagens passadas. Talvez seja chatice minha, mas me choca muito como esse tema de matar seja retratado "como se não fosse nada". Na verdade, toda a história gira em torno dessas tentativas de assassinato. Eu não sei bem como isso entra na cabeça das crianças que assistem, sendo retratado dessa forma. Acredito que a falta de tato possa ser atribuída à época, também, visto que os filmes mais atuais não abordam dessa forma. Também não sei se eufemismos são a forma mais indicada de tratar o assunto, é só uma impressão pessoal. 

Outro ponto que acho muito interessante, é o retrato de cada um dos anões. Como todos têm um traço determinante de sua personalidade como identidade. Eu adoraria entender mais a fundo o que eles significam, alguns dizem ser traços de transtornos psicológicos, outros planetas e astros, chakras. Eu não faço ideia, mas com certeza pela diferenciação e particularidade de cada um, eles têm histórias para contar. Chamo atenção apenas a Dunga, único que não fala, e retratado como mais novo, é sempre o mais "abobalhado" e frequentemente usado de cobaia ou esquecido pelos demais. O que será que o Sr. Walt Disney queria dizer com a junção disso tudo? Só sei que é o mais querido das crianças, talvez pela inocência. É certamente o personagem que eu mais tinha memória afetiva.

Foi uma experiência ótima assistir tudo com outros olhos, tentando enxergar como se fosse algo novo a se analisar do zero. Adoraria também saber outras impressões e pontos de vista. Há tanto mais a se observar com certeza, que talvez tenha deixado passar, mas fico por aqui. Vejo vocês em Pinóquio.


Contextualizando

E como novos ciclos nos motivam a desenvolver sempre algo, eu criei esse blog para: voltar a escrever, me prender em uma meta e dar uma chance ao audiovisual. Eu amo animações e para quem me conhece não é novidade. Porém há um tempo venho vendo elas de outra forma, dando mais atenção a sua mensagem - o que ela passa e o que pretende. Aqui vou começar a por em prática um pequeno "projeto": assistir a todas as animações da Disney com outro olhar e, então, analisar. Contextos, conceitos, mensagens e contrastes entre memória afetiva e mente atual.

Será quase uma viagem no tempo para mim, voltarei para 1937 com o primeiro longa-metragem da empresa: Branca de Neve e os setes anões, até chegar em 2019 com Frozen 2: o reino do gelo (até agora). Passarei pela Pixar também, que será analisada na sequência. O quanto será que a sociedade e nós mudamos nesse tempo? Será que as mensagens passadas às crianças evoluíram? E a linguagem, como têm se adequado? As perguntas são muitas e as respostas virão ao fim de aproximadamente 80 produções. Prende o fôlego e mergulha também.